Expansionismo penal e segurança jurídica em processos administrativos sancionadores

Medo fez com que matérias antes reguladas satisfatoriamente pelo campo administrativo migrassem para a seara penal

Há muito tempo, o direito penal tem estado no centro de um fenômeno expansionista que visa ampliar o seu espectro de incidência (seja pela via legislativa ou mesmo administrativa). O direito penal clássico, tradicionalmente concebido como aquele responsável pela tutela de bens jurídicos individuais, ao longo do Século XX, foi terreno fértil para diversas sugestões doutrinárias que preconizavam o seu “aperfeiçoamento”, de modo a que fosse capaz de acompanhar os estímulos e necessidades da sociedade moderna.

O medo ocasionado pela “sociedade de riscos” fez com que matérias antes reguladas satisfatoriamente pelo campo administrativo migrassem para a seara criminal, originando a denominada “administrativização” do direito penal, fenômeno também acompanhado pela acentuada tipificação de crimes de perigo abstrato.

Por outro lado, em função do alto grau de especificidade dos assuntos ora penalizados, recorreu-se à utilização demasiada de normas penais em branco com a pretensão de potencializar o alcance da norma penal.[1] Este movimento é o elemento caracterizador do expansionismo penal.

Não obstante, é permeado por inegáveis contradições, especialmente quando se nota que há certa mudança de direção do âmbito de incidência tradicional da norma penal para se ocupar da preservação dos interesses da sociedade e manutenção da ordem pública[2], a revelar uma espécie de migração do direito penal para “um direito de gestão punitiva de riscos”[3].

Impulsionados pela problemática em questão e pelo alargamento da quantidade bens jurídicos supraindividuais tutelados, alguns autores se imbuíram da tarefa de estudar o fenômeno da expansão do direto penal. É nesse contexto que se destacam o Jésus Maria Silva Sanchez e Winfried Hassemer, idealizadores de teorias preponderantemente conflitantes, mas sinérgicas em alguns aspectos.

O primeiro, à luz de sua teoria acerca das velocidades do direito penal, observa o fenômeno da expansão sob um prisma mais “romântico”, enfrentando-o como uma tendência natural da sociedade, de sorte que a disciplina criminal precisaria apenas se reformular em determinada medida para formatar um sistema de justiça específico para aqueles delitos ditos representativos do direito penal contemporâneo.

Noutra linha argumentativa, Hassemer (minimalista por essência) era severamente contrário à ideia de expansão do direito penal, cuja tutela deveria se concentrar sobre um núcleo de bens jurídicos tradicionais. Por essa razão, desenvolveu o conceito de “Direito de Intervenção”, para o qual delegou a função de regular (de forma extrajudicial e extrapenal) o tratamento do assunto.

Ana Carolina Carlos de Oliveira esclarece que para o jurista alemão o Direito de Intervenção seria um caminho alternativo, dotado de regras e garantias processuais mais flexíveis que, em contrapartida, não contemplaria a possibilidade de fixação de penas privativas da liberdade. Ou seja, ocuparia uma zona intermediária, ajustada entre o direito penal e o direito administrativo, focada na atuação preventiva e na minimização de danos[4].

O ponto de inflexão de repousa justamente em compreender em que medida o Direito de Intervenção idealizado por Hassemer não estaria concretizado na atual conjuntura do direito administrativo sancionador, ainda que isto não tenha se dado de maneira intencional. Importa investigar, também, se não haveria correlação entre a teoria das velocidades do direito penal desenvolvida por Silva Sanchez e o atual direito administrativo sancionador. Basta rememorar que nas soluções apresentadas por ambos os autores existe uma zona de intersecção muito clara fincada na (i) inexistência pena privativa de liberdade e (ii) na fixação de regras processuais mais brandas e dispositivas.

Partindo desta constatação, parece bastante claro que ambos teóricos (independentemente da linha defendia) preconizam a necessária formulação de um modelo que pudesse reger tais situações. Ao que parece, Hassemer e Silva Sanchez procuraram encontrar resposta jurídica que pudesse tratar do assunto do expansionismo penal de maneira minimamente uniforme, sem espaço para derivações.

Evidenciada a especial conexão entre os motivos que conduziram à visão mencionada, por qual motivo o direito administrativo sancionador tem encontrado regramentos tão díspares e peculiares para cada seara em que a sua aplicação é reivindicada? Se para os autores parece haver respostas homogêneas à expansão penal, seria coerente vislumbrarmos um direito administrativo sancionador “em partes” ou heterogêneo? A indagação não possuir uma resposta definida.

Com efeito, trazendo a discussão para um plano mais concreto, não é necessário um esforço desmedido para detectar que entidades como BCB, CVM e Cade (por exemplo) possuem regramentos totalmente adaptados às realidades internas de cada instituição, onde a clareza e delimitação quanto às “regras do jogo” não costumam seguir um padrão conformador.

A despeito da relação travada com o direito penal, processo sancionador não possui qualquer uniformidade. Basta ver que ora se utiliza de técnicas próprias da seara criminal, ora de mecanismos de origem processual civil, ou – em alguns casos – sequer há o disciplinamento de determinados assuntos que compõem a dinâmica de qualquer processo ou procedimento, o que termina por condicionar o administrado à álea de ser titular de determinadas garantias essenciais a depender da entidade que o fiscalize.

Na esfera de atuação da CVM, por exemplo, o processo administrativo punitivo parece estar mais alinhado aos contornos da dinâmica processual penal, havendo menção expressa à regência do procedimento à luz de princípios de matriz constitucional como “presunção de inocência” e o “devido processo legal” (art. 2º, da Instrução-CVM nº 607, de 2019).

No mesmo sentido, ainda no âmbito da CVM, existe o delineamento de regras de distribuição de processos por conexão para aqueles casos em que a prova da prática de determinada infração possa influir na comprovação de outra (art. 36, inciso I, da Instrução-CVM nº 607, de 2019), em regramento idêntico àquele previsto art. 76, inciso III, do Código de Processo Penal.

Por outro lado, apesar de possuir regramento semelhante, os dispositivos regentes do processo sancionador no BCB parecem ter passado ao largo desta discussão. A Circular nº 3.857, de 2017 (que regulamenta o processo administrativo no âmbito da entidade) não estabelece qualquer medida acerca da tramitação conjunta de procedimentos que tenham um contexto fático comum, ou mesmo que apurem infrações administrativas correlacionadas, o que pode conduzir até mesmo à reflexão a respeito da possibilidade de sua aplicação nessa entidade.

Já no âmbito do Cade, há expressa previsão regimental sobre a questão (art. 36, §8º, do RICADE), contudo, é abordada de forma vaga, apenas com a indicação de que será possível a distribuição por dependência “em razão de conexão ou continência”, sem que sejam tecidas considerações a respeito das condições para sua configuração.

Sob outro enfoque, por mais que os normativos do BCB não disponham sobre a técnica processual da conexão, consignam regramento específico destinado à possibilidade de não se instaurar processo sancionador para casos em que subsista baixa lesão ao bem jurídico tutelado (art. 3º, inciso I, da Circular nº 3.857, de 2017) , em completa harmonia com a técnica da insignificância aplicada na seara jurídico-penal.

Essas identificações se revelam mais importantes ainda quando, em algumas situações, determinados agentes econômicos são supervisionados de forma concomitante por entidades ou órgãos sancionadores (em contextos distintos, obviamente), como no caso das próprias instituições financeiras, vinculadas tradicionalmente à supervisão do BCB, mas que diante da apuração de prática de atos de concentração econômica, ficam sujeitas à atuação concorrente do Cade[5].

O mais curioso é perceber que basicamente todos normativos disciplinadores dos processos sancionadores fazem questão de enunciar o “princípio da segurança jurídica” como um dos critérios norteadores de sua atuação. Com efeito, por possuir previsão expressa no art. 2º, da Lei nº 9.784, de 1999, o postulado da segurança jurídica extrapola a mera uniformidade de práticas ou entendimentos no âmbito de cada entidade e sinaliza para a criação se soluções que sejam isonômicas no âmbito da Administração Pública Federal como um todo.

Evidente que não se deve pôr em xeque a independência de atuação que cada entidade precisa para exercer seu múnus público. Todavia, o alcance dessa medida não parece conflitar com a utilização de instrumentos que sejam eficazes e ao mesmo tempo de adesão ampliada por diversos órgãos e entidades, o que somente cooperaria para o aumento da sensação de segurança jurídica dos administrados.

Por isso, seja pela via da indispensável busca por uma segurança jurídica aos administrados, ou mesmo pelas teorias de Silva Sanchez e Hassemer (que objetivam a idealização de um regramento procedimental para a zona atingida pela expansão penal), a reflexão em torno do direito sancionador está lançada. Se não for possível mensurar os benefícios concretos que poderiam resultar de uma maior uniformização de procedimentos, talvez o questionamento seja o oposto, investigando-se, ao contrário, quais seriam as possíveis perdas decorrentes dessa prática.

É notório que o assunto ainda está bem distante de uma definição, mas, evidentemente, é preciso que os contornos afetos à expansão penal também sejam devidamente ponderados quando se fala em direito sancionador, pois são duas realidades concretas e muito próximas, na qual parece ganhar cada vez mais projeção o direito administrativo sancionador.